21.11.10

Sobre o direito ao esquecimento. Clareira.



O debate trava-se com garra, lá fora. Como salvaguardar o direito a vermos esquecido aquilo que, em tempos, inserimos na rede global? Como invocar a possibilidade de nos transformarmos, de nos reinventarmos outros, de corrigir os erros do passado, diante desse olho gigante sempre aberto, que nunca dorme nem esquece, que é a www?

Em França, a "loi à l'oubli numérique" (ver também, para uma outra prespectiva, isto aqui), recentemente aprovada, tenta organizar alguns princípios nesta questão. Mas como conservar a integridade da memória como órgão crítico, isto é, selectivo e apaixonado, quando tudo em volta parece cristalizar à velocidade de um clique?

Viveremos em palácios de gelo, aprisionados nas imagens de que nos fizemos rodear, reféns de uma projecção de mim que tem lugar em parte alguma.

Estava a pensar nisto quando encontrei este artigo, «Revelações Azuis», acerca dos anos que se seguiram à morte da companheira de Jorge Guillén, em 1947. Durante vários dias, o escritor ficou fechado no quarto, a reler as cartas que lhe escrevera, ao longo de dezasseis anos de namoro. Algumas, com mais de um quarto de século. Entre o presente e essas cartas, duas guerras, um exílio. E, mais intransponível, a morte da mulher que amou. Imagino o sentimento que o percorreu ao redescobrir-se ali, diante de si mesmo, como o Borges que dá consigo mesmo, décadas mais novo, num passeio pelo parque, e tem a oportunidade singular de travar uma conversa com o jovem que foi. Imagino Guillén a entrar dentro de si, exsurgindo-se na memória, redivivo, de um endereçar-se a outro. Na memória de uma carta a alguém que se ama, como uma ferida íntima, um segredo. Ou nem isso, a sombra de uma ferida, um silêncio. De onde irradia todo o esplendor das coisas.

"- Agora - segredou.
- Aqui não - respondeu ela, também num sussurro. - Vamos para o esconderijo. É mais seguro.
Rapidamente, fazendo estalar um ou outro ramo seco, dirigiram-se de novo para a clareira. Quando se viram no meio do círculo de árvores novas, ela parou e voltou-se para ele. Estavam os dois ofegantes, mas o sorriso voltara a surgir nas comissuras dos lábios de Julia. Ficou por instantes a fitá-lo, depois procurou com os dedos o fecho do fato-macaco. E foi, sim, quase como nos sonhos de Winston. Ela despiu-se praticamente com tanta presteza como ele imaginara, e quando atirou a roupa para o chão foi com aquele gesto magnífico que parecia aniquilar uma civilização inteira. O seu corpo branco cintilava ao sol. Mas só decorridos alguns segundos ele o olhou; tinha os olhos presos àquele rosto sardento, ao leve sorriso atrevido. Ajoelhou diante dela e pegou-lhe nas mãos:
- Já fizeste isto alguma vez?"

George Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro.


Sem comentários: