9.11.10

"Passar da cultura para todos para a cultura para cada um."





É o mote do documento publicado na última semana pelo Ministério da Cultura francês, de Frédéric Mitterrand. Segundo noticia o Le Monde, é o resultado decepcionante das políticas lineares de democratização do acesso a bens culturais que motiva esta mudança de paradigma. No fundo, (lá, como aqui) os espaços da alta cultura continuam alheios e interditos à esmagadora maioria da população. A criação de "novos" produtos culturais de consumo massificado vem encenar a satisfação das necessidades de distracção das classes maioritárias, enquanto vende a aparência de um franqueamento da esfera da problematização artística, sem que no entanto o faça verdadeiramente - a aplicação de critérios liberais estritos de correspondência entre procura e oferta dita um afunilamento de sentidos mais tenebroso do que o de qualquer regime de censura. Segundo a nota do Le Monde, a estratégia do gabinete francês passará, daqui em diante, não apenas por ir ao encontro das pessoas comuns, mas, sobretudo, implicá-las nos processos criativos, fazendo dos espaços quotidianos espaços de agenciamento cultural: hospitais, escolas, prisões, etc. Pretende-se, deste modo, contrabater os efeitos de "intimidação social" que afastam as populações dos espaços de alta cultura. Longe de uma forma de "elitismo para todos", a proposta investe na criação de condições de visibilidade para as manifestações de cultura tradicionalmente consideradas marginais: 

 "Il ne s'agit plus de "rendre populaire", mais bel et bien de faire accéder le populaire au rang des intérêts culturels de notre patrimoine et de la création française. C'est dans ce glissement que s'en opère un autre : celui d'une "culture pour tous" invitant la société à adhérer à un consensus intellectuel vers une "culture pour chacun" entendant reconnaître la diversité de la culture, des cultures."

A dimensão construtiva deste plano não legitima, todavia, que ignoremos a questão nuclear: como, "cultura", em tempos nos quais os criadores vão para caixas de supermercados, vivem da caridade dos pais até aos 40, ou vão escrever para a Quinta da família Salgado para ganhar prémios de sociedades S. A.? Como, "cultura", quando 18 a 20% dos portugueses vivem com menos de 10 euros por dia? (E se um livro custa, em média, 15-20e.) A resposta é simples. Ela é, hoje como ontem, um dispositivo que sanciona e outorga graus e títulos de nobreza (cultural). Um marcador social, entre outros, ao serviço da inscrição de uma projecção de identidade na arquiestrutura de uma pertença.

De te fabula narratur. Até porque, afinal, como reconhecem os redactores do documento oficial, "le véritable obstacle à une politique de démocratisation culturelle, c'est la culture elle-même".
  
A talhe de foice, cabia perguntar aos senhores que formularam o documento o que dirão aos conterrâneos acerca daquela cultura que há cerca de mil anos ajudou a fundar a Europa, e a quem agora pagam 300 euros por adulto/100 por criança para "voltarem" para países que apenas conhecem de nome, e de onde nunca chegaram a sair.

Já agora, vale bem a pena ouvir esta entrevista recente do José Gil à Antena1: "Deixámos de ser, de certa maneira, pessoas com desejo".

[Foto: construção da Ponte da Arrábida, 1961] 

8 comentários:

Raskólnikov disse...

Considerações pessoais muito rápidas mais ou menos ligadas à posta do meu colega montanhista:

- A cultura, enquanto organismo que é, deve ser auto-suficiente (o que não é o mesmo que ser indústria);

- A política da democratização da cultura, nos moldes em que a conhecemos, funciona em grande parte na base do subsídio;

- Uma actividade cultural subsidiada, é uma actividade cultural (assumidamente ou não, conscientemente ou não) condicionada: there is no such thing as a free meal;

- O que me leva de novo ao ponto primeiro: a cultura deve ser auto-suficiente, só assim pode ser livre.

Beijinhos e abraços.

Leão Hebreu disse...

Tenho a agradecer o esclarecido comentário, que muito vem ilustrar a minha humilde consideração. Não posso, contudo, deixar de apresentar uma objecção pessoalíssima.

Desagrada-me o argumento da "auto-suficiência" aplicado à cultura. Não porque não reconheça a absoluta justeza da reivindicação de uma autonomia criadora, uma emancipação dos agentes subsidiários. Pelo contrário: não só a reconheço e compreendo, como me sinto inelutavelmente atraído por esse desiderato. Creio que estamos em perfeito acordo quanto a isso.

Porém, dando apenas mais um passo em frente na direcção da concretização destas prerrogativas, a transparência começa a dar lugar a uma nebulosa de pontos de interrogação. Se quisermos manter a coerência com os desígnios iniciais, teremos que nos interrogar acerca do modo de arrecadação de receitas, indispensáveis para a sobrevivência de qualquer criador. E aqui tudo se complica. É que, até serem descobertas árvores de fruto com dinheiro na ponta dos galhos, ele para aparecer na conta de uns tem de sair da de outros. Por outras palavras: se fechámos, como fechámos, a porta aos subsídios, teremos que abrir as janalas de par em par ao financiamento pelos públicos, sob pena de morrermos asfixiados. E eis senão quando nos apercebemos que os custos de produção de qualquer manifestação cultural - qualquer - são muito superiores ao que qualquer um de nós está disposto a pagar do seu bolso.
Pensemos no cinema. O que seria de 90% dos realizadores se não fosse o apoio estatal? O cinema de autor, hoje reduzido aos circuitos de festivais, não pode sobreviver sem os apoios públicos. Como o não pode a grande maioria dos artistas plásticos, fotógrafos, etc... A não ser que aceitem transformar-se em bibelôs da cultura burguesa, para figurar a um canto dos salões quando os Salgados e C.ª dão festas sociais.

Lamentavelmente, essa é a verdade pragmática do paradigma da auto-suficiência. Porquê? Porque nas sociedades liberais criar públicos implica aderir a uma estratégia discursiva docilizada, reconhecível, familiar, que entra pela casa dentro como quem não quer nada.

A maior parte dos europeus, como a maior parte dos portugueses, devem a sua generalizada apatia face à criação artística a um modelo de desenvolvimento que subsidia sem valorizar. Financiamos com as migalhas dos grandes negócios, mas apressamo-nos a esconder para debaixo do tapete, a mandar para o estrangeiro, para festivais longínquos ou coleccionadores na América ou em Paris, longe da vista, longe do coração, para nós a telenovela, para nós o filme fácil, basta que paguemos aos nossos criadores umas migalhas para eles nos deixarem em paz.

Esse é o erro. Não o subsídio. Sem financiamento, a quase totalidade dos portugueses ficaria às escuras quanto ao acesso à arte. Com o pouco financiamento que temos, crianças do Bairro do Lagarteiro ainda vão podendo ir ao TNSJ uma vez por outra, ou à Casa da Música. Ainda vamos podendo produzir documentários independentes, e filmes premiados internacionalmente (Gabriel Abrantes, João Salaviza, saltaram-me à memória). Sem subsídios, estas e outras pessoas ficariam reduzidas à indigência.

A questão é criar condições tais que o financiamento não redunde numa forma de condicionamento. E isso é possível. Basta assumir com seriedade a missão divulgadora e protectora do Estado. No fundo, nunca houve (nem haverá) Arte sem alguém para a pagar. Se a escolha para esse "alguém" for entre a Fundação Portugal Telecom, a família Salgado, ou o Ministério da Cultura, não terei dúvidas no momento de escolher.

Leão Hebreu disse...

P.S. Cf. http://www.publico.pt/Cultura/manifesto-de-realizadores-e-produtores-alerta-para-catastrofe-iminente-do-cinema-portugues_1426630

Raskólnikov disse...

Pragmaticamente, tens absoluta razão. A auto-suficiência na cultura é impossível. Todavia, desejável, a meu ver.

Aceitemos então os subsídios como inevitabilidade. Aqui divergimos: como no primeiro comentário afirmei, não creio que seja humanamente possível um financiamento absolutamente incondicional. Isto porque o condicionamento começa logo pela atribuição: financiamos estes projectos, não financiamos aqueles. O que me leva à outra questão associada ao financiamento público: com que legitimidade - relembro que trabalhamos com fundos apertadíssimos - podemos optar por apoiar um projecto de um jovem criador em detrimento de outro?

Quanto ao P.S.: reflexo desta questão. Financiamento mal aplicado e insuficiente; contractos entre entidades incumpridos; concorrência desleal -- pick your favourite.

Leão Hebreu disse...

É verdade, o "damos a uns, rejeitamos a outros" será sempre o horizonte inultrapassável da questão, sem margem para dúvidas. É aí que entra o factor valorativo (podemos simplesmente chamar-lhe pragmático, ou, mais pomposamente, ético): há que escolher aquele que se apresentar melhor diante do todo, do colectivo, da reunião de pessoas com sensibilidades distintas a que chamamos sociedade. Aqui, provavelmente, a melhor resposta que encontraremos é a de uma comunidade de autoridade que sanciona sentidos à criação, e, com base nessa legitimação de significados, continua a financiar uns, e descontinua outros. No fundo, é a mesma imperfeição de que padece a democracia. E não é pequena.

Mas é, contudo, a mais tolerável, caro amigo!

Raskólnikov disse...

É, de facto, uma grande imperfeição. Como qualquer sociedade não educada culturalmente -- que é, parece-me, algo que acontece cada vez mais com a nossa -- a selecção torna-se previsível e tendencialmente serão escolhidos projectos cada vez mais medíocres, apenas porque se enquadram no horizonte de expectativas da sociedade. Curiosamente, também deste problema sofre a auto-suficiência: a cultura procuraria aquilo que garante público. Temo que tenhamos chegado a uma aporia.

Paulo Brás disse...

autonomia e independência são coisas diferentes. a professora celina bem vos explicará isso.

Laura do Petrarca disse...

Como devem calcular os meus caros amigos, ignorei todos os comentários acima proferidos e limitei-me a examinar esta posta de forma desapaixonada.

Muito oportuno, caro Leão Hebreu.

Receba os cordiais cumprimentos ou, se quiser, comprimentos (dependendo daquilo que desejar)