30.11.10

O tempo em que tínhamos cabeças-de-limão





Mas lá virá a fresca Primavera,
Tu tornarás a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.

Francisco Rodrigues Lobo


 Não parece que haja muitas razões para ouvir «Ever», dos Lemonheads, como algo mais do que uma canónica punk rock love song. À faixa 11 do álbum Lick, editado em 1989, não falta uma certa monotonia do fundo instrumental, pontuada por inflexões perfeitamente integradas que não impedem a sensação de uma rígida constância rítmica da batida, cuja regularidade cessa apenas com o final da faixa. Atendendo ao contexto em que surge o álbum, e à preponderância de Evan Dando, seria tentador dizer que o baixo-continuum de fundo pouco inovador sustenta indícios de um vocalismo excêntrico, multicromático e explicitamente púbere que prefigura o que será o melhor e o pior dos anos noventa. Prefiro reparar, contudo, na sensibilidade poética da interpretação, bastante clara no respeito pela prosódia dos versos, no cumprimento de ritmos de aceleração e de pausa, na atenção à translineação dos versos, subtilmente sublinhada no prolongamento das sílabas finais de verso acentuadas, numa característica que dominará a década seguinte, mas que aqui se reveste de uma quase ingenuidade que confere ao todo a aura de uma descoberta e de uma experiência, sem anular o vigor que se percebe no ímpeto da execução.

Lá para o fim, Dando lança: «The record asks, "will you still need me when i'm 64?"». Não é fácil imaginar como seremos quando lá chegarmos. É provável que não nos recordemos mais de nós mesmos, e que, olhando para trás, não nos consigamos, já, reconhecer. Talvez o tempo (como o baterista) engula o ritmo da memória, e o que fomos desapareça definitivamente nas dobras do que seremos. Evan Dando conta já com 43. É possível que o galope das baterias e o estertor das cordas convoquem, nessa vertigem, o tempo consumado. Tenho fé na cumplicidade etimológica que aproxima coração (do lat. 'cor') às cordas. E não deixo de pensar no amantíssimo verbo italiano "stringere", para tocar, apertar, e também abraçar fortemente, e a semelhança deste com "strings". Levar o coração às cordas. Dedilhar os lugares do coração como se escrevesse com o sangue. A pulsação frenética de anos que serão puro esquecimento. A pulsação frenética "até que a música esteja à nossa volta", e não haja senão a música na respiração do sangue. O rock é uma viagem à orla da noite sem sono, e «Ever» exsurge na memória de um passado sempre em queda, como o delicado ofício de perder o pé nos acordes soltos no mundo. «But this doesn't ever have to end».

29.11.10


Non ma fille, tu n'iras pas danser,
Chistophe Honoré, FR, 2009 [PT: 09.2010]

"Se te apaixonares pela moda, rapidamente ficarás viúva."

Cromwell

Uma verdadeira Hedda Gabler, esta Chiara Mastroianni tão pós-moderna. Um filme a não perder.

À confiança do Leão Hebreu.

28.11.10

24.11.10

Això és or, xata!


Vampire Weekend
"Horchata"

Pequena nota para a discussão do preço dos livros em Portugal



Fnac.pt: 45,25€ + portes de envio

BookDepository.co.uk: 19,22€

Discuss

To shoot an elephant



de Mohammad Rujailah & Alberto Arce

When I pulled the trigger I did not hear the bang or fell the kick-one never does when a shot goes home-but I heard the devilish roar of glee that went up from the crowd. In that instant, in too short a time, one would have thought, even for the bullet to get there, a mysterious, terrible change had come over the elephant. He neither stirred nor fell, but every line of his body had altered. He looked suddenly stricken, shrunken, immensely old, as though the frightful impact of the bullet had paralyzed him without knocking him down. At last, after what seemed a long time-it might have been five seconds, I dare say-he sagged flabbily to his knees. His mouth slobbered. An enormous senility seemed to have settled upon him. One could have imagined him thousands of years old. I fired again into the same spot. At the second shot he did not collapse but climbed with desperate slowness to his feet and stood weakly upright, with legs sagging and head drooping. I fired a third time. That was the shot that did for him. You could see the agony of it jolt his whole body and knock the last remnant of strength from his legs. But in falling he seemed for a moment to rise, for as his hind legs collapsed beneath him he seemed to tower upwards like a huge rock toppling, his trunk reaching skywards like a tree. He trumpeted, for the first and only time. And then down he came, his belly towards me, with a crash that seemed to shake the ground even where I lay.

George Orwell
from "Shooting an elephant"

23.11.10

Le pas sur le néant.




No mesmo ano em que aqui a manhã acordou com cravos na boca, um pequeno homem  venceu a imposição da gravidade e regressou ao isolamento de um útero, suspenso novamente de um fio. Lá fora, o abismo, o nada. Sobre o frio, a trepidação de uma vida, uma respiração. Às sete da manhã de 7 de Agosto de 1974, Phillippe Petit atravessava o espaço entre as torres do WTC, sobre uma corda bamba, sem rede nem corda de segurança.

Oito anos antes da inauguração, ao ver um projecto das torres na página de uma revista, Phillippe, distraidamente, riscou uma linha unindo o topo de ambas. 



Até ao terceiro passo, o medo tomou-se do equilibrista, ao recordar-se que não tinha verificado o ponto de ancoragem - não lhe fora possível estar no topo das duas torres, antes. Depois do terceiro passo, invadiu-o uma grande alegria. E isso vê-se nas fotografias. A vida toda jogada no gesto de um passo. Um homem no fio. Solitário, a caminhar sobre o mundo. Mais solitário do que a mais solitária das artes - a literatura.

Não se pode atravessar o nada e continuar a caminhar no meio do mundo, incólume. Anos mais tarde, a namorada de Phillippe dirá: “Quando passámos a nossa primeira noite depois da travessia, vi nos seus olhos que ele já não era o mesmo, já não estava mais entre nós – vivia em um outro patamar”.

Como Orpheu. Não podemos fitar o nada e continuar iguais. Mas é preciso provar que ele existe, e, por um momento, de relance, fitá-lo no centro da noite, onde a morte, o desejo e a vida convergem, numa pulsão sanguínea de ser.

Flutuando a 440 metros de altura, novíssimo pássaro, ele reinventa uma forma poética de inscrição.


A meio da travessia, Phillippe deita-se sobre a corda, rosto voltado para o céu. Permaneceu quarenta e cinco minutos entre as torres. A polícia ameaçava puxar uma das extremidades da corda.

Por fim, como quem regressa a casa, com alguns passos, chegou à segunda Torre. A estrutura do belo? Como estrutura, se a casa é a respiração do homem, sem fora?

22.11.10

Willkommen, Aldo the Apache



You probably heard we ain't in the educatin' business; we in the bad literature killin' business. And cousin, business is a-boomin'.

Sobre um ensino de elites: hoje, no Público


Peter Paul Rubens
A educação de Maria de Médicis (1622-1625)


Alguns estabelecimentos de ensino superior público estão a cobrar propinas de mestrado que atingem valores exorbitantes. Por exemplo, fazer uma pós-graduação no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) chega a custar 37 mil euros.
Na Universidade de Coimbra, o valor de propina mais elevado é, para um mestrado de um ano, de 19 mil euros. O PÚBLICO foi tentar perceber o que explica a existência de propinas tão elevadas e se os casos em que os estabelecimentos cobram valores desta importância são pontuais ou se, pelo contrário, tendem a tornar-se um cenário generalizado.
Com a aplicação do processo de Bolonha, as antigas licenciaturas, de quatro ou cinco anos, foram transformadas em licenciaturas de três anos, designadas de 1.º ciclo, e em mestrados, ditos 2.º ciclo, de dois anos.

Tamara Drewe, 2010. Um compasso de pernas desiguais.


 
Baseando-se na crónica homónima do The Guardian, inspirada pela personagem de Thomas Hardy (1840-1928), Tamara Drewe explora os paradoxos mais refinados de pessoas que só querem ser qualquer coisa diferente de si mesmas. Ainda que nessa procura percam a cabeça, ou o nariz. Apesar do enredo um quanto naïve, espicaça com uma ironia certeira as fragilidades e inconsistências de um modelo intelectual de adereços colados a cuspe.

Stephen Frears, UK, 2010.

21.11.10


Há uma linha de terra
e mar na tua boca.

Albano Martins

Well, you know I have a love; a love for everyone I know.



Will Oldham or Bonnie Prince Billy
"I See a Darkness"
I See a Darkness



Johnny Cash (cover)
"I see a darkness"
American III: Solitary Man



images from Koyaanisqatsi (1982)

Acid Pauli (remix)
"I see a darkness"

The Unbearable Lightness of Being

Dois irmãos, filhos de pai e mãe diferentes.

http://www.youtube.com/watch?v=mWO-rpsRpdU

"The heaviest of burdens crushes us, we sink beneath it, it pins us to the ground. But in love poetry of every age, the woman longs to be weighed down by the man's body.The heaviest of burdens is therefore simultaneously an image of life's most intense fulfillment. The heavier the burden, the closer our lives come to the earth, the more real and truthful they become. Conversely, the absolute absence of burden causes man to be lighter than air, to soar into heights, take leave of the earth and his earthly being, and become only half real, his movements as free as they are insignificant. What then shall we choose? Weight or lightness?" Milan Kundera (The Unbearable Lightness of Being)

Hinos para depois do apocalipse



Arcade Fire
"No cars go"
Neon Bible

Clicar AQUI (para desejar ter lá estado).

Calendários Lavazza: de 93 a 2010


Helmut Newton (1993-94)



Albert Watson (1997)

Marino Parisotto (1998)


David LaChapelle (2008)


Finlay MacKay (2009)


Miles Aldridge (2010)

Sobre o direito ao esquecimento. Clareira.



O debate trava-se com garra, lá fora. Como salvaguardar o direito a vermos esquecido aquilo que, em tempos, inserimos na rede global? Como invocar a possibilidade de nos transformarmos, de nos reinventarmos outros, de corrigir os erros do passado, diante desse olho gigante sempre aberto, que nunca dorme nem esquece, que é a www?

Em França, a "loi à l'oubli numérique" (ver também, para uma outra prespectiva, isto aqui), recentemente aprovada, tenta organizar alguns princípios nesta questão. Mas como conservar a integridade da memória como órgão crítico, isto é, selectivo e apaixonado, quando tudo em volta parece cristalizar à velocidade de um clique?

Viveremos em palácios de gelo, aprisionados nas imagens de que nos fizemos rodear, reféns de uma projecção de mim que tem lugar em parte alguma.

Estava a pensar nisto quando encontrei este artigo, «Revelações Azuis», acerca dos anos que se seguiram à morte da companheira de Jorge Guillén, em 1947. Durante vários dias, o escritor ficou fechado no quarto, a reler as cartas que lhe escrevera, ao longo de dezasseis anos de namoro. Algumas, com mais de um quarto de século. Entre o presente e essas cartas, duas guerras, um exílio. E, mais intransponível, a morte da mulher que amou. Imagino o sentimento que o percorreu ao redescobrir-se ali, diante de si mesmo, como o Borges que dá consigo mesmo, décadas mais novo, num passeio pelo parque, e tem a oportunidade singular de travar uma conversa com o jovem que foi. Imagino Guillén a entrar dentro de si, exsurgindo-se na memória, redivivo, de um endereçar-se a outro. Na memória de uma carta a alguém que se ama, como uma ferida íntima, um segredo. Ou nem isso, a sombra de uma ferida, um silêncio. De onde irradia todo o esplendor das coisas.

"- Agora - segredou.
- Aqui não - respondeu ela, também num sussurro. - Vamos para o esconderijo. É mais seguro.
Rapidamente, fazendo estalar um ou outro ramo seco, dirigiram-se de novo para a clareira. Quando se viram no meio do círculo de árvores novas, ela parou e voltou-se para ele. Estavam os dois ofegantes, mas o sorriso voltara a surgir nas comissuras dos lábios de Julia. Ficou por instantes a fitá-lo, depois procurou com os dedos o fecho do fato-macaco. E foi, sim, quase como nos sonhos de Winston. Ela despiu-se praticamente com tanta presteza como ele imaginara, e quando atirou a roupa para o chão foi com aquele gesto magnífico que parecia aniquilar uma civilização inteira. O seu corpo branco cintilava ao sol. Mas só decorridos alguns segundos ele o olhou; tinha os olhos presos àquele rosto sardento, ao leve sorriso atrevido. Ajoelhou diante dela e pegou-lhe nas mãos:
- Já fizeste isto alguma vez?"

George Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro.


20.11.10

Para o Leão Hebreu


Põe-te a milhas
das pastilhas


Citemos, já que estamos numa de citar



I sat all morning in the college sick bay
Counting bells knelling classes to a close.
At two o'clock our neighbors drove me home.

In the porch I met my father crying--
He had always taken funerals in his stride--
And Big Jim Evans saying it was a hard blow.

The baby cooed and laughed and rocked the pram
When I came in, and I was embarrassed
By old men standing up to shake my hand

And tell me they were "sorry for my trouble,"
Whispers informed strangers I was the eldest,
Away at school, as my mother held my hand

In hers and coughed out angry tearless sighs.
At ten o'clock the ambulance arrived
With the corpse, stanched and bandaged by the nurses.

Next morning I went up into the room. Snowdrops
And candles soothed the bedside; I saw him
For the first time in six weeks. Paler now,

Wearing a poppy bruise on his left temple,
He lay in the four foot box as in his cot.
No gaudy scars, the bumper knocked him clear.

A four foot box, a foot for every year.

-- «Mid-term break», Seamus Heaney

19.11.10

Questão de Seriedade

Caros Compinchas,

com o objectivo de me transformar numa pessoa socialmente séria, venho por este meio divulgar o meu agradecimento público ao Ípsilon pela venda de:




"Rendez-vous"(1985), André Téchiné

Com efeito, isto é bom.
Não me obriguem a definir "sério", não quero ferir susceptibilidades.

Para sempre vossa,

MD ("Mete-Discos") Laura do Petrarca

"O amor é louco, é cego, é doente"

Também esta notícia.

"CLXIX. a lenha do silêncio"

______________ alguém sem ter perdido ninguém,
pode ficar confrontado com a ausência de uma pessoa
que lhe queria dizer muito? «Bem-me-quer», mas vem.

as formas estéticas dos amantes são elevações no ar - oscilando à brisa que me procura - e não mais redefinirão nem sequer um tópico de
saudade.
a nossa primeira forma estética de amor acabou.

na noite que escurece, um frémito pela alegria que me ia causar a tua
presença _________ estere; esta noite escurece ___________ não em todas as noites, mas a alegria da crepitação do fogo nas tuas achas é uma espécie
de vertigem cintilante que acende os extremos do fulgor que espero vir
a conhecer melhor esta noite nos seus efeitos de trepidação visual sobre
a linguagem. Respiro,

é um caudal de chuva apolínea que não faz esmorecer nem a alegria,
nem a obscuridade,
de que tento reescrever, no princípio da aurora,
a relação simultânea.


Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga; Curso de Silêncio de 2004,Lisboa, Assírio e Alvim, 2006, p. 224.

17.11.10

Réplica.



Com cordialidade e simpatia, à consideração da veneranda Hannah Montana.

Ámen.





The golden age of cultural theory is long past. The pioneering works of Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, Louis Althusser, Roland Barthes and Michel Foucault are several decades behind us. So are the path-breaking early writings of Raymond Williams, Luce Irigary, Pierre Bourdieu, Julia Kristeva, Jacques Derrida, Hélène Cixous, Jurgen Habermas, Fredric Jameson and Edward Said. Not much that has been written since has matched the ambitiousness and originality of these founding mothers and fathers. Some of them have since struck down. Fate pushed Roland Barthes under a Parisian laundry van, and afflicted Michel Foucault with Aids.It dispatched Lacan, Williams and Bourdieu, and banished Louis Althusser to a psychiatric hospital for the murder of his wife. It seemed that God was not a structuralist.

Terry Eagleton, After Theory. London: Penguin, 2004.


[acima: Carlo Crivelli, Um Apóstolo, 1470-75]

15.11.10

Don't speak, I can hear you.



"Perdita"*

Cem tribos continuam por descobrir no mundo - Ciência - DN

Cem tribos continuam por descobrir no mundo
por PEDRO VILELA MARQUES

Foi encontrada uma nova tribo no parque de Kugapakori Nahua Nanti, na selva amazónica do Peru. Este é um dos 15 grupos indígenas do Peru que vivem em auto-isolamento.
"É inacreditável que em pleno século XXI ainda haja populações que estejam à margem do mundo globalizado." O espanto do ministro da Cultura do Peru deve-se à descoberta de uma nova tribo no parque de Kugapakori Nahua Nanti, na selva amazónica do país. Mas a admiração de Juan Ossio será ainda maior por este ser apenas um dos 15 grupos indígenas do Peru que vivem em auto-isolamento e que nunca foram contactos pela "civilização". Segundo organizações internacionais no terreno, em todo o mundo, estima-se que cerca de cem tribos rejeitem contactos com o exterior. Estas são as pessoas mais vulneráveis do planeta.
Tal como a maioria dos grupos que ainda são desconhecidos, também o agora encontrado tem de fugir dos madeireiros e dos colonos que invadem o seu território. As provas da sua existência foram recolhidas durante uma expedição que durou mais de ano e meio - entre Janeiro de 2009 e Setembro deste ano - do Instituto Para o Desenvolvimento dos Povos Andinos, Amazónicos e Afro-Peruanos: lanças, flechas, recipientes de casca e bolsas feitas de fibra vegetal.
Os expedicionários, que criaram cinco postos de controlo nas fronteiras do parque, realizaram ainda vídeos e tiraram fotografias aos nativos e a pequenas cabanas feitas com ramos de palmeiras, estas já conhecidas das autoridades a partir de outros estudos.
Mas mais do que base para investigações, os postos de controlo visam sobretudo evitar que a reserva seja invadida por pessoas sem autorização, como madeireiros ou simples locais. Como aconteceu em Outubro na região de Madre de Dios, na fronteira com o Brasil, quando os indígenas feriram com uma lança um adolescente de 14 anos que invadiu o seu território.
Mais de um ano antes, novo exemplo dos perigos da colisão dos dois mundos, mas agora de sentido contrário: uma tribo peruana teve de fugir para o Brasil para escapar ao avanço dos exploradores de madeira.
"Todas estas pessoas enfrentam ameaças terríveis." A organização não governamental Survival International (Sobrevivência Internacional) alerta que, se nada for feito para as proteger, "estas tribos correm o risco de desaparecer completamente". Desde logo porque não têm imunidade contra as nossas doenças, o que, aliado à destruição do seu território, leva a Survival International a rotular estas populações como as mais vulneráveis do planeta.
"Tudo o que sabemos sobre estes indígenas isolados indica que eles procuram manter esse isolamento. Nas raras ocasiões em que são vistos, eles fazem questão de mostrar que querem ficar sozinhos", revela a ONG que luta pela preservação do território e estilo de vida de tribos em todo o mundo.
O que explica, por exemplo, a reacção de tribos como a que foi descoberta no ano passado, também na fronteira entre o Peru e o Brasil, que se mostrou hostil para com os invasores (ver caixa).
Entre as 15 comunidades peruanas que se mantêm complemente incontactáveis nas regiões mais remotas da selva amazónica estão as tribos cacataibo, isconahua, matsigenka, mashco-piro, mastanahua, murunahua, nanti e yora.

13.11.10

Don't blame relativism. Breve reflexão documental acerca do relativismo cultural

 

 
In the period between the attack on the World Trade Center towers and the American response, a reporter from the Los Angeles Times called to ask me if the events of the past weeks meant “the end of relativism.” (I had an immediate vision of a headline—RELATIVISM ENDS: MILLIONS CHEER—and of a photograph with the caption, “At last, I can say what I believe and mean it.”) Well, if by relativism one means a condition of mind in which you are unable to prefer your own convictions and causes to the convictions and causes of your adversary, then relativism could hardly end because it never began. Our convictions are by definition preferred; that’s what makes them our convictions, and relativizing them is neither an option nor a danger. (In the strong sense of the term, no one has ever been or could be a relativist for no one has the ability to hold at arm’s length the beliefs that are the very foundation of his thought and action.) But if by relativism one means the practice of putting yourself in your adversary’s shoes, not in order to wear them as your own but in order to have some understanding (far short of approval) of why someone else—in your view, a deluded someone—might want to wear them, then relativism will not and should not end because it is simply another name for serious thought."
 
Stanley Fish

Nina Mae Fowler


Nina Mae Fowler, Me & Marlon, 2008

Espreitem, por favor, o site oficial da artista.

Venho informar-lhes, caros leitores, que a epígrafe a integrar o meu próximo trabalho académico, será nada mais que:


Eheu, eheu, Portugal!


(o trabalho ainda não está pronto e, em modos muito resumidos, deverá querer falar dessa coisa que é ser português. O eheu, eheu, Portugal! é do Garrett, o das viagens na terra dele.)

A boneca de Kokoschka

(Jean-Léon Gérôme, Pigmalião e Galateia, 1890)

(Oskar Kokoschka, Two nudes lovers, 1913)


A boneca [...] foi mandada construir pelo artista austríaco Oskar Kokoschka (1886-1980) depois do fim da sua relação com Alma Mahler. Era uma cópia minuciosa da mulher amada, em tamanho real, e que ele tratava como se fosse uma pessoa viva, numa atitude de Pigmalião amargurado. Um dia, enfureceu-se e destruiu-a.

Tudo isto a propósito do mais recente livro de Afonso Cruz.

12.11.10

Le parole per raccontare la bellezza del mondo

I 90 anni del grande critico. Una riflessione
sulla letteratura come esperienza del proprio limite

[artigo do Corriere della Sera ]

Jean Starobinski
Jean Starobinski

Come dire e descrivere la bellezza del mondo? Per far questo, afferma Proust alla fine di Combray, bisogna superare «il disaccordo tra le nostre impressioni e la loro espressione». Ma che cosa significa accordo tra impressione ed espressione? In base a quale criterio si può apprezzarne la giustezza? Proust sa bene che l’emozione non si comunica in virtù della sua sola intensità. Essa deve conquistare i mezzi, verbali o pittorici, che la interpreteranno per manifestarla. Per nascere, i poteri della parola richiedono un percorso di apprendistato, un progresso iniziatico. Il romanzo di Proust, come è ben noto, ripercorre, con gli strumenti della maturità infine raggiunta, tutta la serie semi-fittizia dei tentativi ingenui, degli errori, dei traviamenti, delle ferite che precedettero la chiara consapevolezza del compito da svolgere. Ma tutto ciò ha avuto un prezzo. La padronanza tardiva è stata pagata con l’accettazione di molte perdite, e soprattutto con l’ammissione del soccorso della memoria involontaria che va di pari passo con l’ascesi volontaria e con il rifiuto di ogni «idolatria». Solo una volta invecchiato, l’adolescente esaltato che avrà ormai attraversato tanti paesaggi, tanti lutti, tante futilità mondane, potrà descrivere con ironia l’emozione provata nei dintorni di Combray alla fine di una giornata in cui il mondo aveva svelato davanti ai suoi occhi un fugace sprazzo della sua bellezza: «Il tetto di tegole creava nello stagno, che il sole aveva reso di nuovo specchiante, una marezzatura rosa alla quale, prima, non avevo mai fatto attenzione. E vedendo che sull’acqua e sulla superficie del muro un pallido sorriso rispondeva al sorriso del cielo, gridai in preda all’entusiasmo, brandendo il mio parapioggia arrotolato: "Accipicchia, accipicchia!" Ma immediatamente sentii che sarebbe stato mio dovere non accontentarmi di quell’opaca esclamazione e cercar di vedere più chiaro nel mio trasporto».

La testimonianza del ricordo porta con sé, nello stesso istante, un compito etico: il senso di un dovere, e un imperativo di conoscenza, «vedere più chiaro», vengono distintamente percepiti, al di là del trasporto estetico. Il narratore se ne rende conto solo molto più tardi: una sensazione di inquietudine aveva accompagnato l’ebbrezza, incapace di manifestarsi se non attraverso un’esclamazione ripetuta, quasi un grido di dispetto. Il giovane del passato era stato il testimone - affascinato, inerme, colpevole - della bellezza, apparsa tra cielo e terra in un gioco di immagini e di luci. Attraverso la memoria riflessiva, in risposta al ricordo di quella visione, il narratore riconquista lo spettacolo a cui aveva assistito allora e insieme il turbamento che la bellezza del luogo e del momento aveva suscitato in lui. Retrospettivamente, comprende che il dispetto, le esclamazioni banali, il gesticolare ridicolo, erano stati solo gli antecedenti amorfi di ciò che, più tardi, si sarebbe dispiegato, sulla pagina che stiamo leggendo, in una scrittura «letteraria » perfettamente articolata. Il dovere viene tardivamente soddisfatto, la conoscenza è acquisita: giustizia è infine resa a quell’istante miracoloso del passato, quando gli «ori» del sole, succedendo alla pioggia, avevano fuggevolmente rischiarato un angolo di campagna francese quale avrebbe potuto portarlo sulla tela il pennello di Théodore Rousseau o di Claude Monet.
Il primo saluto alla bellezza del mondo, per il giovane Marcel, ha dunque rotto a mala pena il silenzio, o per meglio dire lo ha rotto in maniera così rumorosa da entrare in dissonanza con esso. Fu solo l’esplosione di una gioia confusa, attraversata da un sentimento di insufficienza, e dalla delusione di riuscire a dare a quella bellezza soltanto una risposta afasica. Una risposta del corpo al paesaggio, risposta piena di stupore ma cieca, prigioniera dell’opacità interiore e di conseguenza incapace di costruire la minima frase simile alla luce esterna. La narrazione offerta ai lettori del testo romanzesco paga dunque un debito antico, consegnando al nostro sguardo la descrizione un tempo impossibile e, contemporaneamente, la raffigurazione ironica di un «io» anteriore, ignorante e meravigliato. Proust fa uso, qui, di una figura retorica di cui si può dire che tutto il suo romanzo è l’illustrazione: la preterizione. Ma si tratta di una preterizione di un tipo molto particolare. Nel suo uso tradizionale, la preterizione consiste nel dire una cosa dichiarando di non volerla dire. È un’astuzia dell’arte oratoria che così finge di giungere più in fretta al termine: «Non ti dico…». Il narratore della Recherche, da parte sua, pratica la preterizione al passato. Descrive un paesaggio, poi una scena, mentre dichiara di non essere stato, allora, in grado di descriverli, di comprenderli, di dargli il loro vero significato. Gli erano sfuggiti. «Non ho saputo dire…». La parola letteraria cerca di riparare una perdita ritrovando (o dichiarando ritrovato) il «tempo perduto» che raccoglie luoghi e persone. L’opera letteraria salda un debito. Espia, in un certo senso, un tempo in cui la verità della sensazione non era stata riconosciuta, e dà voce a una percezione che sul momento non aveva potuto incarnarsi in un’espressione.
Ma esistono descrizioni del paesaggio che non siano preteritive? L’espressione è sempre in ritardo sull’impressione. Proust lo rivela accentuando lo scarto tra i due momenti. Il presente della sensazione non può essere descritto che al passato. E per giunta questo passato è una finzione: quello che leggiamo è un romanzo. Il supremo miraggio letterario consiste nel rendere credibile il gesto che ricattura, nel far credere che lo scrittore non sia interamente passato accanto alla vita, e alla verità.
Proust non è stato il primo né il solo a sperimentare il «disaccordo» tra ciò che si offre allo sguardo e ciò che il linguaggio è in grado di dire. La distanza è troppo grande, la bellezza troppo inafferrabile, e lo spirito, per quanto faccia esso stesso parte di quel mondo che lo incanta, sente di non avere la forza di registrarlo e di fissarlo. Nella sua Histoire des artistes vivants, Théophile Silvestre riporta un’affermazione di Corot che esprime questa delusione con forza e semplicità: «Quando mi trovo in mezzo alla natura, provo rabbia verso i miei quadri».
La retorica dell’ineffabile, il ricorso sistematico ai prefissi negativi degli epiteti (inesprimibile, indicibile, inaudito...) appartiene sia alla teologia negativa sia al vocabolario che celebra la bellezza del mondo dichiarandola fuori portata per i nostri mezzi espressivi. Questo vocabolario ha l’evidente effetto di segnalare un limite: designa l’ostacolo che ci vieta di metterci sullo stesso piano dell’essere che si manifesta a noi nella sua magnificenza o nella sua estrema delicatezza. Ha la funzione di segnalare che ci sentiamo votati allo scacco perché siamo sensibili a ciò che ci eccede. Ma ricorrendo al prefisso di negazione, che umilia il linguaggio, il nostro spirito si attribuisce implicitamente il potere di riconoscere l’insuperabile, e in tal modo di superarlo. «Saper salutare la bellezza», secondo l’espressione di Rimbaud, significa saper conservare nelle parole stesse il silenzio che ci è imposto da quanto va al di là della nostra esistenza. La descrizione del paesaggio è una delle occasioni in cui la parola letteraria può fare l’esperienza del proprio limite e allo stesso tempo elevarsi fino al «sublime». In Proust, il grido di dispetto è un momento preliminare, che si apre verso il futuro. Ma Proust conosce anche, come molti altri artisti, un grido finale: quello del Marsia scorticato che si intravede in secondo piano in una delle più belle scene pastorali di Claude Lorrain.
Ricordiamo l’ultima frase del poema in prosa intitolato Il confiteor dell’artista: «Lo studio della bellezza è un duello in cui l’artista grida di sgomento, prima di essere vinto». Baudelaire introduce, in un poema in prosa, ovvero nell’opera d’arte stessa, il grido che confessa la disfatta dell’arte. È la versione moderna di ciò che, al di là dell’ineffabile, ritrova l’infandum: l’impronunciabile perché sacro. (Traduzione di Monica Fiorini)
Jean Starobinski

08 novembre 2010(ultima modifica: 09 novembre 2010)© RIPRODUZIONE RISERVATA
 
L’autore
Jean Starobinski è uno tra i critici letterari più apprezzati a livello internazionale. Nella sua lunga carriera ha abbinato studi in area umanistica a ricerche nel campo medico-scientifico. Nato a Ginevra nel 1920, Starobinski compirà 90 anni il prossimo 17 novembre. Membro dell’Académie des sciences morales et politiques dell’Institut de France, nel ’98 ha vinto il premio Balzan per la storia e la critica della letteratura. I suoi libri sono tradotti in tutto il mondo. Tra gli ultimi pubblicati in Italia: «1789. I sogni e gli incubi della Ragione» e «L’invenzione della libertà» (editi da Abscondita).

10.11.10

Discos Chorados

O meu vizinho Manuel pediu "40 Day Dream" de Edward Sharpe & The Magnetic Zeros para dedicar à Dona Francisca, filhos e restante família. Não perdi tempo.

Nelinho, vamos à música...

Uma resposta possível.



Um dos artigos mais estimulantes que tenho lido. A polémica: em que secção/estante colocar Decision Points, o livro (biografia política) recentemente publicado de G. W. Bush? Livreiros norte-americanos assumiram uma escolha criativa. Na secção "Crimes".

O facto traz à baila uma das principais reivindicações de alguns intelectuais:

Genres and categories exist for the benefit, principally, of book retailers and customers. Book-buyers browse; they need to have a rough idea where their favourite fodder is to be found. Shelving is their compass.

Afinal, mais de dois milénios de discussão não tiveram muito mais consequências práticas do que isto: saber onde estão as coisas. E não é pouco. Julgo que não podemos esperar muito mais, no futuro, do que este arrumar e desarrumar de estantes, esta fruição do arquivo que é, bem vistas as coisas, tudo o que temos. O que importa é que mantenhamos o diálogo suficientemente aberto para podermos saborear, de quando em vez, a amargura  do café como se fosse a primeira chávena da nossa vida. O conhecimento inesperado como ficção do real.

If you pick up a cup of coffee, thinking it's tea, it tastes like shit. 

Eis a razão pela qual não devemos arrumar demasiado as coisas. Tornadas previsíveis, elas deixam de ser aquilo que nos fez apaixonarmo-nos. Não há o calor dos corpos fundentes debaixo dos espaços esquadrinhados pela nomeação.

E, claro, podemos sempre permitir o consolo metafísico de cultivar uma estante do limbo onde arrumar aqueles que oscilam na infinita indecisão de um lugar habitável.


[acima: De Anatomische les van Dr. Nicolaes Tulp, Rembrandt,  1632]

9.11.10



Herpes
"Very Berlin"
Música de Florian Pühs
Tradução de Ricardo Domeneck

Essa batida, esse baixo, essa monotonia
Isso é very Berlin, você é very Berlin
Esse som, esse estilo, esses jeans
Isso é very Berlin, você é very Berlin

Baby, enfim chegamos ao fim
Enfim chegamos a Berlim

Vem pra cá,
Saia do buraco,
Tão mesquinho
E tão ferrado

Sem contrato,
Sem dinheiro,
Dá na mesma.

Essa batida, esse baixo, essa monotonia
Isso é very Berlin, você é very Berlin
Essa camisa, nessa cor!
Isso é very Berlin, você é very Berlin

"Passar da cultura para todos para a cultura para cada um."





É o mote do documento publicado na última semana pelo Ministério da Cultura francês, de Frédéric Mitterrand. Segundo noticia o Le Monde, é o resultado decepcionante das políticas lineares de democratização do acesso a bens culturais que motiva esta mudança de paradigma. No fundo, (lá, como aqui) os espaços da alta cultura continuam alheios e interditos à esmagadora maioria da população. A criação de "novos" produtos culturais de consumo massificado vem encenar a satisfação das necessidades de distracção das classes maioritárias, enquanto vende a aparência de um franqueamento da esfera da problematização artística, sem que no entanto o faça verdadeiramente - a aplicação de critérios liberais estritos de correspondência entre procura e oferta dita um afunilamento de sentidos mais tenebroso do que o de qualquer regime de censura. Segundo a nota do Le Monde, a estratégia do gabinete francês passará, daqui em diante, não apenas por ir ao encontro das pessoas comuns, mas, sobretudo, implicá-las nos processos criativos, fazendo dos espaços quotidianos espaços de agenciamento cultural: hospitais, escolas, prisões, etc. Pretende-se, deste modo, contrabater os efeitos de "intimidação social" que afastam as populações dos espaços de alta cultura. Longe de uma forma de "elitismo para todos", a proposta investe na criação de condições de visibilidade para as manifestações de cultura tradicionalmente consideradas marginais: 

 "Il ne s'agit plus de "rendre populaire", mais bel et bien de faire accéder le populaire au rang des intérêts culturels de notre patrimoine et de la création française. C'est dans ce glissement que s'en opère un autre : celui d'une "culture pour tous" invitant la société à adhérer à un consensus intellectuel vers une "culture pour chacun" entendant reconnaître la diversité de la culture, des cultures."

A dimensão construtiva deste plano não legitima, todavia, que ignoremos a questão nuclear: como, "cultura", em tempos nos quais os criadores vão para caixas de supermercados, vivem da caridade dos pais até aos 40, ou vão escrever para a Quinta da família Salgado para ganhar prémios de sociedades S. A.? Como, "cultura", quando 18 a 20% dos portugueses vivem com menos de 10 euros por dia? (E se um livro custa, em média, 15-20e.) A resposta é simples. Ela é, hoje como ontem, um dispositivo que sanciona e outorga graus e títulos de nobreza (cultural). Um marcador social, entre outros, ao serviço da inscrição de uma projecção de identidade na arquiestrutura de uma pertença.

De te fabula narratur. Até porque, afinal, como reconhecem os redactores do documento oficial, "le véritable obstacle à une politique de démocratisation culturelle, c'est la culture elle-même".
  
A talhe de foice, cabia perguntar aos senhores que formularam o documento o que dirão aos conterrâneos acerca daquela cultura que há cerca de mil anos ajudou a fundar a Europa, e a quem agora pagam 300 euros por adulto/100 por criança para "voltarem" para países que apenas conhecem de nome, e de onde nunca chegaram a sair.

Já agora, vale bem a pena ouvir esta entrevista recente do José Gil à Antena1: "Deixámos de ser, de certa maneira, pessoas com desejo".

[Foto: construção da Ponte da Arrábida, 1961]