30.11.10

O tempo em que tínhamos cabeças-de-limão





Mas lá virá a fresca Primavera,
Tu tornarás a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.

Francisco Rodrigues Lobo


 Não parece que haja muitas razões para ouvir «Ever», dos Lemonheads, como algo mais do que uma canónica punk rock love song. À faixa 11 do álbum Lick, editado em 1989, não falta uma certa monotonia do fundo instrumental, pontuada por inflexões perfeitamente integradas que não impedem a sensação de uma rígida constância rítmica da batida, cuja regularidade cessa apenas com o final da faixa. Atendendo ao contexto em que surge o álbum, e à preponderância de Evan Dando, seria tentador dizer que o baixo-continuum de fundo pouco inovador sustenta indícios de um vocalismo excêntrico, multicromático e explicitamente púbere que prefigura o que será o melhor e o pior dos anos noventa. Prefiro reparar, contudo, na sensibilidade poética da interpretação, bastante clara no respeito pela prosódia dos versos, no cumprimento de ritmos de aceleração e de pausa, na atenção à translineação dos versos, subtilmente sublinhada no prolongamento das sílabas finais de verso acentuadas, numa característica que dominará a década seguinte, mas que aqui se reveste de uma quase ingenuidade que confere ao todo a aura de uma descoberta e de uma experiência, sem anular o vigor que se percebe no ímpeto da execução.

Lá para o fim, Dando lança: «The record asks, "will you still need me when i'm 64?"». Não é fácil imaginar como seremos quando lá chegarmos. É provável que não nos recordemos mais de nós mesmos, e que, olhando para trás, não nos consigamos, já, reconhecer. Talvez o tempo (como o baterista) engula o ritmo da memória, e o que fomos desapareça definitivamente nas dobras do que seremos. Evan Dando conta já com 43. É possível que o galope das baterias e o estertor das cordas convoquem, nessa vertigem, o tempo consumado. Tenho fé na cumplicidade etimológica que aproxima coração (do lat. 'cor') às cordas. E não deixo de pensar no amantíssimo verbo italiano "stringere", para tocar, apertar, e também abraçar fortemente, e a semelhança deste com "strings". Levar o coração às cordas. Dedilhar os lugares do coração como se escrevesse com o sangue. A pulsação frenética de anos que serão puro esquecimento. A pulsação frenética "até que a música esteja à nossa volta", e não haja senão a música na respiração do sangue. O rock é uma viagem à orla da noite sem sono, e «Ever» exsurge na memória de um passado sempre em queda, como o delicado ofício de perder o pé nos acordes soltos no mundo. «But this doesn't ever have to end».

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